A morte é anterior a si mesma. Começa antes, muito antes. É todo um lento, suave, maravilhoso processo. O sujeito já começou a morrer e não sabe.
Morrer significa, em última análise, um pouco de vocação. Há vivos tão pouco militantes que temos vontade de lhes enviar coroas ou de lhes atirar na cara a última pá de cal. Esses, sim, têm a vocação da morte.
Há, em qualquer infância, uma antologia de mortos.
Na hora de morrer, e quando sabe que está morrendo, todo homem tem um olhar de contínuo.
Há na morte por intoxicação alimentar um inevitável toque humoristico, que humilha o cadáver e compromete o velório.
Para mim, qualquer morta tem mais densidade do que qualquer morto.
A morte natural é própria dos medíocres. O medíocre tem de fazer uma força tremenda para morrer tragicamente. Ele morre de gripe, de pneumonia ou da empada que matou o guarda. Já o grande homem sempre morre tragicamente. Veja o caso de Lincoln, de Gandhy, de Kennedy.
Há uma inteligência da morte, assim como há uma bondade da morte. O que vai morrer já olha as coisas, as pessoas, com a doçura do último olhar. Eu diria que é a saudade antes do adeus.
O sujeito procura esquecer que o homem é também o seu próprio cadáver. E ele, queira ou não, não destruirá jamais a sua vocação para a morte.
Nada mais falso do que o medo de morrer, e eu diria que nós fazemos tudo para morrer o mais depressa possível. Os nossos hábitos, os nossos usos, os nossos vícios, as nossas irritações mal disfarçam a vontade, a urgência, a fome da morte.
Chegou às redações a notícia da minha morte. E os bons colegas trataram de fazer a notícia. Se é verdade o que de mim disseram os necrológios, com a generosa abundância de todos os necrológios, sou de fato um bom sujeito.
A morte é um grande despertar.
Do livro "Flor de Obsessão", Reunião das 1000 melhores frases de Nelson Rodrigues Seleção e organização: Ruy Castro / Companhia das Letras - 1997 Paginas 110.
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